Rubem Alves
lustrações de Roberto CaldasEditora Paulus
Coleção Estórias para pequenos e grandes – 1999
“Aos contadores das estórias”
O mundo das crianças não é tão risonho quanto se pensa. Há
medos confusos, difusos, as experiências das perdas, bichos, coisas, pessoas
que vão e não voltam.... O escuro da noite: o mundo inteiro se ausentou.
Voltará?
Os grandes não gostam disso e inventam estórias de meninos e
meninas que eram só risos. Talvez para convencerem a si mesmos de que sua
própria infância foi gostosa...
Escrevi as estórias da Coleção ESTORIAS PARA PEQUENOS E
GRANDES, em torno de temas dolorosos, que me foram dados por crianças. Não é
possível fazer de conta que eles não existem. ..
Nem o livro que se lê nem o disquinho que se ouve têm o
poder de espantar o medo.
É preciso que se ouça a voz de um outro, que diz:
-Estou aqui, meu filho...”
“Esta estória foi construída em torno da dor da diferença: a
criança que não se sente bem igual às outras, por alguma marca no seu corpo, na
sua maneira de ser... Esta eu sei bem, é estória para ser contada também para
os pais.
Eles também sentem a dor dentro dos olhos.
Alguns dos diálogos foram tirados da vida real.
Ela lida com algo que dói muito: não é a diferença, em si
mesma, mas o ar de espanto que a criança percebe nos olhos dos outros. Dizem os
poemas sagrados que, após a queda, os olhos foram a primeira parte do corpo a
ser envenenada. De órgãos de carinho transformaram-se em ferrões. Homens e
mulheres descobriram o embaraço da diferença e se esconderam...
O medo dos olhos dos outros é sentimento universal. Todos
gostaríamos de olhos mansos....
A diferença não é resolvida de forma triunfante, como na
estória do Patinho Feio. O que muda não é a diferença. São os olhos...”
Imagem disponível em:
http://i.s8.com.br/images/books/cover/img7/143377_4.jpg
Título: COMO NASCEU A ALEGRIA
Editora: Paulus
Autor: RUBEM ALVES
ISBN: 8534900884
Origem: Nacional
Ano: 2002
Edição: 17
Número de páginas: 16
Acabamento: Brochura
Formato: Médio
"COMO NASCEU A ALEGRIA"
(Rubem Alves)
Você pode não acreditar, mas é verdade: muitos anos atrás a terra era um jardim maravilhoso.
É que os anjos, ajudados pelos elefantes, regavam tudo, com regadores cheios de água que eles tiravam das nuvens. Esta era a sua primeira tarefa, todo dia.
Se esquecessem, todas as plantas morreriam, secas, estorricadas... Para que isso não acontecesse, Deus chamou o galo e lhe disse:
- Galo, logo que o sol aparecer, bem cedinho, trate de cantar bem alto para que os anjos e os elefantes acordem...
E é por isto que, ainda hoje, os galos cantam de manhã...
Flores havia aos milhares. Todas eram lindas. Mas, infelizmente, todas elas eram igualmente vaidosas e cada uma pensava ser a mais bela. E, exibindo as suas pétalas, umas para as outras, elas se perguntavam, sem parar:
- Não sou a mais linda de todas? Até pareciam a madrasta da Branca de Neve.
Por causa da vaidade, nenhuma delas ouvia o que as outras diziam e nem percebiam que todas eram igualmente belas. Por isso, todas ficavam sem resposta.
E eram, assim, belas e infelizes.
No meio de tanta beleza infeliz, entretanto, certo dia uma coisa inesperada aconteceu.
Uma florinha, que estava crescendo dentro de um botão, e que deveria ser igualmente bela e infeliz, cortou uma d e suas pétalas num e spinho, ao nascer.A florinha nem ligou e vivia muito feliz com sua pétala partida. Ela não doía. Era uma pétala macia. Era amiga.
Até que ela começou a notar que as outras flores a olhavam com olhos espantados. E percebeu, então, que era diferente.
- Por que é que as outras flores me olh am assim, papai, com tanto espanto, olhos tão fixos na minha pétala...?
- Por que será? Que é que você acha?, perguntou o pai.
Na verdade, ele bem sabia de tudo. Mas ele não queria dizer. Queria que a florinha tivesse coragem para olhar para as vaidosas e amar a sua pétala.
- Acho que é porque eu sou meio esquisita..., a florinha respondeu.
E ela foi ficando triste, triste... Não por causa da sua pétala rachada, mas por causa dos olhos das outras flores.
- Já estou cansada de explicar. Eu nasci ass im... Mas elas perguntam, perguntam, perguntam...
Até que ela chorou. Coisa que nunca tinha acontecido com as flores belas e infelizes.
A terra levou um susto quando sentiu o pingo de uma lágrima quente, porque as outras flores não choravam. E ela chamou a árvore e lhe contou baixinho:
- A florinha está chorando. E a terra chorou também. A árvore chamou os pássaros e lhes contou o que estava acontecendo. E, enquanto falava, foi murchando, esticando seus galhos num longo lamento, e continua a chorar até hoje, à beira dos rios e dos lagos, aquela árvore triste que tem o nome de chorão. E das pontas dos seus galhos correram as lágrimas que se transformaram num fiozinho de água...Os pássaros voaram até as nuvens.
- Nuvens, a florinha está chorando. E choraram lágrimas que se transformaram em pingos de chuva... As nuvens choraram também, juntando-se aos pássaros numa chuva enorme, choro do céu. As lágrimas das nuvens molharam as camisolas dos anjinhos que brincavam no céu macio.
E quiseram saber o que estava acontecendo. E quando souberam que a florinha estava chorando, choraram também... E Deus, que era uma flor, começou a chorar também.
E a sua dor foi tão grande que, devagarinho, como se fosse espinho, ela foi cortando uma de suas pétalas. E Deus ficou tal e qual a florinha.
E aquele choro todo, da terra, das árvores, dos pássaros, dos anjos, de Deus, virou chuva, como nunca havia caído.
O sol, sempre amigo e brincalhão, não agüentou ver tanta tristeza. Chorou também. E a sua boca triste virou o arco-íris...
E as chuvas viraram rios e os rios viraram mares. Nos rios nasceram peixes pequenos.
Nos mares apareceram os peixes grandes.
A florinha abriu os olhos e se espantou com todo aquele reboliço. Nunca pensou que fosse tão querida. E a sua tristeza foi virando, lá dentro, uma espécie de cócega no coração, e sua boca se entortou para cima, num riso gostoso...
E foi então que aconteceu o milagre.
As flores belas e infelizes não tinham perfume, porque nunca riam.
Quando a florinha sorriu, pela primeira vez, o perfume bom da flor apareceu.
O perfume é o sorriso da flor. E o perfume foi chamando bichos e mais bichos...
Vieram as abelhas... Vieram os beija-flores... Vieram as borboletas... Vieram as crianças.
Um a um, beijaram a única flor perfumada, a flor que sabia sorrir.
E sentiram, pela primeira vez, que a florinha, lá dentro do seu sorriso, era doce, virava mel...
Esta é a estória do nascimento da alegria. De como a tristeza saiu do choro, do choro surgiu o riso e o riso virou perfume.A florinha não se esqueceu de sua pétala partida.
Só que, deste dia em diante, ela não mais sofria ao olhar para ela, mas a agradava, como boa amiga. Quanto aos regadores dos anjos, nunca mais foram usados.
De vez em quando, olhando para as nuvens, a gente vê um deles, guardado lá dentro, já velho e coberto de teias de aranha...
Enquanto a florinha de pétala partida estiver neste mundo, a chuva continuará a cair e o brinquedo de roda em volta do seu sorriso e do seu perfume não terá fim ..
Texto disponível em:
http://contandoradehistorias.blogspot.com/2008_01_01_archive.html
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